
Três décadas após Convenção, Pará avança no combate à violência contra a mulher e reduz feminicídios em mais de 22%
Três décadas após a assinatura da Convenção de Belém do Pará, que reconheceu a violência contra a mulher como violação dos direitos humanos, a capital paraense ainda enfrenta índices alarmantes. Em 2024, Belém testemunhou a permanência da violência de gênero como uma realidade cotidiana, com milhares de mulheres sendo agredidas dentro de casa, majoritariamente por parceiros íntimos. Embora os dados mais recentes mostrem uma queda parcial nos feminicídios, o número de denúncias e atendimentos segue em crescimento, o que revela tanto uma maior conscientização quanto a persistência estrutural do problema.
A cidade, que empresta nome ao tratado internacional, permanece como símbolo e campo de batalha. O cenário atual é marcado por avanços pontuais, como a atuação da Delegacia da Mulher Virtual, e por uma rede de atendimento ampliada. Os desafios persistem: subnotificação, violência recorrente, desigualdade no acesso aos serviços e necessidade de fortalecimento das respostas institucionais continuam a exigir ação contínua e eficaz.
Panorama das denúncias em Belém e no Pará
Em 2024, o Pará registrou um dos maiores volumes de atendimento do país pelo canal Ligue 180, com uma média de 2.051 atendimentos por dia, somando 750.687 registros ao longo do ano. Desse total, 132.084 foram denúncias formais, número que cresceu 21,6% em relação ao ano anterior. Esse aumento é interpretado por especialistas como reflexo da ampliação do acesso à informação e da confiança institucional, embora também indique a gravidade da situação enfrentada pelas mulheres no estado.
Em Belém, os dados seguem a tendência estadual. As denúncias são majoritariamente feitas por mulheres negras (52,8%), com predominância de relatos de violência psicológica, seguida da violência física. O bairro do Guamá se destaca como uma das áreas com maior número de registros, especialmente aos fins de semana, no período noturno. A reincidência dos casos e a frequência dos ataques revelam uma violência sistemática e prolongada, muitas vezes invisível aos olhos públicos até que se transforme em tragédia.
Feminicídio e lesão corporal: sinais de redução
Apesar do cenário desafiador, alguns dados oferecem sinais positivos. Entre janeiro e julho de 2024, o Pará apresentou uma redução de 22,2% nos casos de feminicídio — caindo de 36 para 28 registros. Também houve queda de 10% nas ocorrências de lesão corporal em ambiente doméstico. Ao longo do ano, o estado totalizou 50 feminicídios, número 12,28% inferior ao registrado em 2023.
Em Belém, parte dessa redução pode ser atribuída a iniciativas recentes como a criação da Deam Virtual, lançada em março de 2024. Com a proposta de facilitar o registro de ocorrências e ampliar o alcance da rede de proteção, o canal digital atendeu 238 mulheres em seus primeiros meses de funcionamento. Em 81% dos casos, as vítimas conseguiram medidas protetivas, revelando o potencial dessa ferramenta para agilizar respostas e salvar vidas.
Rede de atendimento especializada
A capital paraense conta hoje com uma das estruturas mais robustas da região Norte no combate à violência contra a mulher. São 21 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) em operação contínua, incluindo unidades 24 horas em Belém e Ananindeua. Essas delegacias oferecem atendimento multidisciplinar e atuam em parceria com serviços de saúde e assistência social.
Além disso, desde 2022, o Programa Pró-Mulher Pará vem se consolidando como uma política de referência. Com 39 viaturas exclusivas — conhecidas como “viaturas rosas” — e equipes especializadas, o programa já realizou mais de 5.400 atendimentos. A atuação é concentrada na Região Metropolitana de Belém e visa principalmente ampliar o acolhimento humanizado e fortalecer medidas protetivas. A combinação entre ações presenciais e digitais representa um esforço do estado em ampliar o acesso e acelerar respostas.
Onde e quando ocorrem os casos
A violência contra a mulher em Belém ocorre majoritariamente dentro de casa. Em 2024, cerca de 53 mil ocorrências foram registradas no próprio domicílio da vítima, enquanto outras 43 mil ocorreram na residência compartilhada com o agressor. Esses dados expõem a persistência da violência doméstica como principal forma de agressão de gênero, sustentada por laços afetivos, dependência econômica e isolamento social.
Além do local, o tempo também é fator relevante: 46,4% das vítimas relataram agressões diárias, enquanto 32.591 mulheres afirmaram conviver com a violência há mais de um ano. A repetição sistemática e o silêncio que a cerca dificultam o rompimento do ciclo de agressão. Em Belém, essa dinâmica é agravada por fatores como baixa escolaridade, desemprego e ausência de rede familiar ou comunitária de apoio.
Desafios que permanecem
Apesar dos avanços, os desafios na capital paraense são inúmeros. A subnotificação segue sendo um dos maiores obstáculos. Muitas mulheres ainda não denunciam seus agressores por medo de represálias, descrença na eficácia das medidas protetivas ou dependência econômica. Isso impede a atuação imediata dos órgãos de proteção e perpetua a impunidade.
Além disso, há desigualdade no acesso aos serviços de proteção, sobretudo nos bairros periféricos e áreas da Região Metropolitana de Belém, onde a estrutura ainda é insuficiente. Mesmo com a existência de canais digitais e unidades especializadas, há relatos de demora na concessão de medidas protetivas e falta de acolhimento sensível, o que pode desestimular novas denúncias. O enfrentamento à violência de gênero em Belém ainda requer maior capilaridade dos serviços, formação continuada de equipes e uma cultura institucional voltada à escuta e à ação efetiva.
A Convenção de Belém do Pará: marco histórico no combate à violência contra a mulher
Em 9 de junho de 1994, representantes dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) reuniram-se em Belém, capital do Pará, para assinar um documento inédito no mundo: a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. Pela primeira vez, a violência contra mulheres foi reconhecida formalmente como uma violação dos direitos humanos e uma ofensa à dignidade humana. O texto estabeleceu que toda mulher tem o direito de viver livre de violência, tanto na esfera pública quanto privada.
A assinatura da Convenção representou um divisor de águas no enfrentamento à violência de gênero nas Américas. Ela não apenas fixou diretrizes para a prevenção e punição da violência, como impulsionou reformas legislativas em diversos países, inclusive no Brasil, onde resultou na criação de leis como a Maria da Penha e o reconhecimento do feminicídio como crime qualificado. Três décadas depois, o legado do tratado segue vivo. Em Belém, cidade que sediou esse marco histórico, o cenário atual mostra que muito foi conquistado — mas ainda há um longo caminho a percorrer para que o compromisso assumido em 1994 se transforme em realidade plena para todas as mulheres.
Serviço:
As denúncias podem ser feitas em qualquer localidade do Estado, clicando no serviço “DEAM Virtual”, no site da Polícia Civil do Pará (www.pc.pa.gov.br). A ferramenta permite à vítima registrar ocorrências, solicitar medidas protetivas de urgência, e acessar serviços como perícias e suporte sem precisar sair de casa.
Com informações de: Governo do Pará (SEGU P), Ministério das Mulheres (Ligue 180), Periódico PMPA em Revista, documentos institucionais.