O capacitismo precisa acabar: por um mundo onde nossos filhos sejam vistos com dignidade

Quando uma autoridade trata uma criança autista como um transtorno, não é só uma sentença que fere — é toda uma sociedade que escancara sua falta de empatia e compromisso com a dignidade humana.


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Por Camila Eneyla.

Era para ser mais um momento de escuta, de ponderação, de justiça. Aqueles em que o Estado se senta para ouvir quem tanto grita em silêncio. Mas o que se ouviu ali não foi só um equívoco. Foi uma ferida aberta: “Um filho deixa de ser filho e passa a ser um transtorno”. Palavras pronunciadas por um desembargador, Amílcar Roberto Bezerra Guimarães, do Tribunal de Justiça do Pará. Frases que escorreram frias e afiadas, como se não ferissem. 

Mas feriram. Profundamente. Não apenas uma mulher. Feriram um país inteiro de mães que lutam todos os dias para criar, proteger e amar seus filhos autistas em um mundo que insiste em negar-lhes dignidade.

Faltou-lhe humanidade, faltou-lhe a compreensão mais básica do que significa ser responsável por uma decisão que afeta vidas reais. Quando o poder se afasta da empatia, ele se torna uma arma contra os vulneráveis.

A mãe daquela audiência pedia algo simples: justiça. Pedia um aumento na pensão para cuidar do filho que não é menos filho por ser autista. Pelo contrário, é uma criança que precisa de ainda mais amor, estrutura, presença e recursos. Ela não estava exigindo luxo. Estava pedindo condições para seguir uma missão que é, para tantas de nós, o maior ato de entrega e coragem: criar um filho neurodivergente num país capacitista.

Quando ouvi essa frase pela primeira vez, minha respiração falhou por um instante. Pensei em todas as noites sem dormir. Nos choros abafados no banheiro. Nos boletos que não esperam. No olhar perdido de tantas mães tentando entender um laudo, uma crise, um futuro incerto. Pensei também em mim, em tantas amigas, irmãs, vizinhas que abriram mão de tudo para seguir sendo o porto seguro dos filhos.

O que o desembargador fez foi mais que insensibilidade. Foi abuso simbólico. Foi às beiras do cruel. Ele usou da toga para perpetuar machismo e capacitismo, vociferando uma violência institucional que ecoa nas estruturas. Não foi só contra uma mulher. Foi contra todas.

A reação nas redes foi rápida. Classificando os comentários do desembargador como repugnantes beirando o absurdo: “o pai precisa pagar aluguel”, “ele tem que comer”, “ela que se casasse com um homem mais rico”. Uma metáfora perfeita da podridão de uma sociedade que ainda culpa a mulher pela pobreza, pelo abandono, pela existência de uma criança com necessidades específicas.

É como se nos dissessem o tempo todo: você não tem o direito de lutar. Querem nos calar. Querem nos adoecer. Querem que aceitemos um sistema que nos empurra para a margem com um sorriso fingido. Mas a verdade é que nós estamos despertando. E não vamos mais aceitar sermos tratadas como incômodas, exageradas ou histéricas.

Ser mãe de uma criança autista é aprender a se reinventar a cada dia. É entender que a rotina é feita de mapas sensoriais, terapias, silêncio e descobertas. É ver seu filho florescer no tempo dele, com suas próprias cores, suas próprias melodias. E é também abrir mão de uma carreira, de um diploma, de um sonho profissional para sustentar o maior de todos os projetos: formar um ser humano sensível, forte e brilhante.

Talvez por isso o mundo tema tanto nossas crianças. Talvez o medo seja esse: que elas venham a transformar esse sistema apodrecido. Porque sim, eu acredito que a cura do capacitismo é a presença de autistas no poder. Nos tribunais, nas escolas, nos laboratórios, nas universidades, nas empresas, no Congresso. Imaginem um país onde as políticas são pensadas com empatia verdadeira, com escuta real. Onde o olhar da diferença seja potencial e não defeito.

Eu sonho, sim, com um Brasil onde nossos filhos autistas sejam cientistas, professores, engenheiros, artistas, presidentes. Porque eles não são transtornos. São a possibilidade de um mundo novo. E enquanto esse mundo não chega, seguimos resistindo. Com amor. Com dor. Com verdade.

E com a esperança radical de que um dia, a justiça vista a toga da empatia. E que nenhum filho seja chamado de transtorno jamais.


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