Maio Laranja e as vozes silenciadas do passado
Por Camila Eneyla.
Tivemos um mês inteiro dedicado ao combate do abuso e da exploração sexual infantil no Brasil. E, ainda assim, me pergunto: por que falamos sobre isso só em maio, se as violências contra nossas crianças acontecem todos os dias? Essa reflexão me leva, inevitavelmente, às histórias da minha avó — mulher forte, analfabeta, mas de uma sabedoria que nenhum livro foi capaz de ensinar.
Ela contava, sem fazer muito alarde, que “tinha que colocar ele pra correr”, referindo-se a um homem mais velho que rondava sua casa, interessado em uma de suas filhas, ainda menina. “Já estava cansada de colocar ele pra correr. Tinha tanto ódio que um dia peguei uma pedra grande que estava do meu lado e joguei nele. Nunca mais apareceu. Na época, ofereceu até uns gados como pagamento, mas eu não vendi minhas filhas, mesmo sentindo a dor da fome no meu estômago.” Essas palavras ficaram gravadas em mim como um grito ancestral, como uma prova viva de que o abuso contra crianças, especialmente meninas, não é novidade no Brasil. É uma ferida antiga, enraizada em um sistema perverso que sempre lucrou com a vulnerabilidade dos mais pobres.
No Norte do país, especialmente nas regiões ribeirinhas e mais isoladas, as histórias de meninas “negociadas” para casamento ou trabalho forçado ainda ecoam. Nos séculos passados, não era raro que famílias humildes vissem suas filhas serem oferecidas a homens mais velhos em troca de bens. E mesmo após a abolição da escravidão em 1888, feita por decreto real da Princesa Isabel, a verdade é que a escravidão nunca de fato terminou. Ela apenas mudou de forma. Os negros, especialmente as mulheres e crianças, continuaram sendo tratados como propriedade. Não só mão de obra servil, mas também corpos disponíveis para o prazer alheio.
Essas práticas deixaram raízes profundas. Dados atuais mostram que as maiores vítimas de exploração sexual infantil no Brasil são meninas negras, pobres e muitas vezes invisíveis ao Estado. Não é coincidência. É histórico. É estrutural. É racismo. É machismo. E é, acima de tudo, um fracasso coletivo de consciência.
O Censo Demográfico de 2013 já apontava o Pará como o estado com o maior índice de analfabetismo do país. E isso não se reflete apenas nos números da educação, mas também na ausência de proteção, de políticas públicas eficazes e, principalmente, de empatia social com as infâncias periféricas.
Minha avó faleceu sem nunca ter aprendido a ler ou escrever. Mas, paradoxalmente, ela carregava valores que hoje se esfarelam diante de uma sociedade cada vez mais superficial.
Uma geração que troca profundidade por likes, que cultua a imagem e esquece da essência. Se antes morríamos de desgosto, hoje morremos de depressão. E essa fragilidade emocional, muitas vezes, nasce da desconexão com as nossas raízes, com as dores daqueles que vieram antes de nós. Porque se nos permitíssemos sentir a dor dos nossos ancestrais, transformaríamos nossa revolta em luta, nossa raiva em reverência.
Vivemos tempos em que se confunde liberdade com negligência. Mas amar e cuidar são compromissos intransferíveis, sobretudo quando se trata de crianças. Ninguém é obrigado a amar, é verdade. Mas quando uma mulher dá à luz, ela assume, de forma visceral, o compromisso de proteger aquele ser até que ele possa caminhar com suas próprias pernas. Nossa sociedade precisa reaprender esse valor. A integridade física e moral de uma criança deveria ser sagrada, inviolável. Infelizmente, não é.
E por isso eu escrevo. Porque não posso aceitar que o silêncio continue sendo cúmplice da violência. Porque não posso esquecer o olhar da minha avó — dura, firme e ao mesmo tempo amorosa — me ensinando que há coisas que o estômago suporta, mas a consciência não.
Se você ver uma criança sendo maltratada, violentada, assediada, grave, filme ou fotografe discretamente e denuncie. A denúncia é anônima e protegida por lei. Ligue 100. A omissão pode custar uma vida. A coragem, pode salvá-la. Que o Maio Laranja seja apenas o início de uma consciência que não se apaga no calendário.